Recentemente, mais especificamente hoje,
saiu o listão dos aprovados da Universidade Federal do Pará logo pela manhã, e
como forma de brincar com os meus amigos fiz um post no facebook que transcrevo
aqui: “PASSSEEEIIIIIII!!! Finalmente! Achei que não ia conseguir! Agora é só
festaaaaaaa! Um soco na mente daqueles que não acreditaram em mim! Matei o
Super Galo e passei para a próxima fase de A Invasão das Galinhas! Tão feliz!”.
Bom, não passei no vestibular, até
porque já estou me formando na Universidade referida (porque eu faria um novo
vestibular?). Acredito que deixei bem claro a ironia de que aquilo não passava
de uma brincadeira (até usei o nome trash de um jogo para computador justamente
para reforçar a ironia do comentário), mas mesmo assim algumas pessoas me
cumprimentaram pela “grande conquista”, realmente acreditando que seria um
calouro. O que me faz pensar: ou elas não leram o post na íntegra ou elas
simplesmente nunca foram apresentadas a ironia.
Porque coloco como introdução um
fato bizarro como este dentro de uma análise de um filme como Compliance? Porque ironicamente, a
medida que via as pessoas me parabenizando resolvi assistir esse filme,
dirigido por Craig Zobel, mesmo sem saber do que se tratava, e vi incríveis
semelhanças do acontecimento do filme como o meu acontecimento bizarro nesta
rede social, que explicarei logo adiante.
Compliance
conta a história de uma lanchonete de uma cidade do interior dos Estados
Unidos, gerenciada por Sandra Fromme (Ann Dowd), que recebe um telefonema da
polícia afirmando que uma de suas funcionárias havia roubado uma quantia em
dinheiro da bolsa de uma cliente que estava na delegacia fazendo a denuncia,
logo a funcionária Becky (Dreama Walker) é chamada na sala da gerência que fica
nos fundos da lanchonete (onde a maior parte do filme se passa) para ser
revistada, a partir daí os conflitos vão se desenvolvendo.
Compliance
(que ainda não recebeu um título nacional) é desenvolvido com uma direção
extremamente competente de Craig Zobel, que ainda escreve o filme. Apesar de o
filme ser quase teatral por se passar na maior parte dentro de um mesmo local e
com uma quantidade restrita de personagens, o suspense e os conflitos são tão
bem desenvolvidos, com tanto cuidado, que é bem difícil do espectador se sentir
desinteressado. A câmera parece a todo o momento estar desfilando por aquele
local simples e bastante esquecível, filmando sempre em planos-detalhe os
objetos e instrumentos com quais aqueles funcionários trabalham, revelando-os
com bastante tristeza e simplicidade. A trilha sonora é bastante elegante e
precisa ao reforçar os momentos mais tensos com um violoncelo de acordes
pesados.
O elenco é composto por atores
desconhecidos do grande público, como Dreama Walker, da série cômica
Apartamento 23, e Ann Dowd, que até então tinha feito apenas personagens
secundários em filmes independentes. Dreama Walker é o elo fraco do filme,
apesar de ser a protagonista, deixando o caminho completamente livre para que
Ann Dowd possa brilhar ao revelar sua Sandra Fromme como uma mulher
extremamente calma, por vezes patética, mas que pode elevar o tom da voz de vez
em quando, nada que seja autoritário, já que na maioria das vezes ela o faz
para demonstrar alguma autoridade com seus funcionários, que sempre zombam
secretamente dela.
O fato é que Compliance levanta uma série de debates fundamentais da sociedade
em que vivemos e hoje. Por isso, se você ainda não viu o filme e pretende
vê-lo, aconselho-o para por aqui. Repito, se você ainda não viu o filme e
pretende vê-lo, pare a leitura por aqui. Se você ainda não entendeu, por favor,
leia este parágrafo mais uma vez.
SPOILERS:
O telefonema deste suposto policial
acusando uma das funcionárias dessa lanchonete de roubo é falso, não se passa
de um trote de alguém que tem muito tempo livre e a fim de atrapalhar a vida
dos outros, mas em nenhum momento qualquer personagem da história cogita esta
possibilidade (o que pode parecer uma falha do roteiro, mas não é), o que faz
com que Becky seja submetida a uma série de abusos, inclusive um forçado sexo
oral devido a uma restrita “ordem policial”. Caso ela não cumpra suas ordens,
ela será presa. Mas nenhum personagem acha que essas ordens já foram longe
demais, e apenas obedecem elas cega e pateticamente.
Além de levantar a discussão sobre
trotes telefônicos (que aqui no Brasil já tem chegado a índices alarmantes, mas
que ainda é pouco privilegiada), o filme ainda discute a relação
funcionário/patrão em uma situação delicada como esta, mas, talvez, a mais
importante de todas é a discussão de como somos seres feitos e educados para
obedecer as ordens que vem de cima, aniquilando totalmente qualquer habilidade
de raciocínio ou questionamento.
Na sociedade de hoje, vemos padres e bispos
como figuras de autoridade, são eles os donos da verdade religiosa e obedecemos
com medo de sermos castigados, pagamos o dízimo (que por vezes assumem um valor
absurdamente caro) sem sequer saber para onde ele vai ou o motivo de sua
importância, só ouvimos que essa é a palavra de Deus e estamos bem com isso,
compramos a nossa passagem aos reinos do céu.
Em Compliance
não é muito diferente, a polícia está aí para manter a ordem, para nos dizer o
que fazer, então se um policial do outro lado da linha diz que eu devo obrigar
uma funcionária a tirar a roupa e abrir mão de qualquer dignidade expondo-a a
tamanha humilhação, eu o faço, com medo de ser preso, sem em nenhum momento
questionar se ele já passou dos limites ou sequer questionar se ele realmente é
um policial. Parece um absurdo, mas esse tipo de situação já aconteceu mais de
70 vezes nos Estados Unidos.
Agora voltando ao assunto do início do
texto (caso você não se lembre, pode ler os dois primeiros parágrafos, eu
espero). Parece-me, hoje, que somos cobertos por uma cegueira que nos impede de
ver as coisas que estão na nossa frente, mesmo deixando explícito que aquilo
não passava de uma brincadeira (meus posts são geralmente muito irônicos, que
brincam com as situações bizarras do cotidiano, o que ainda deixa mais claro o
teor falso do meu comentário) as pessoas continuaram me parabenizando,
inclusive pessoas da minha família, que sabem que estou prestes a me formar.
Então, levando em conta os fatos, acredito que Compliance deveria ser exibido obrigatoriamente em todos os cinemas
de todas as cidades, ele é de utilidade pública, e urgente. Hoje, pedir para as
pessoas pensarem e questionarem é tão difícil quanto a aparição de pôneis
voadores feitos de pudim. Não, eles não existem, sociedade.